Entre o trabalho do artista visual e o que se escreve sobre esse trabalho existe uma tensão recíproca: um se apóia no outro de maneira instável, como numa tradução. Mas essa tensão se faz mais aguda, se evidencia mais quando o artista resolve trabalhar deliberadamente com os signos da escrita, desconstruindo-os, trazendo-os de volta a uma estranheza original.

Esse é o caminho que Marina Camargo escolheu explorar. Todos nós, letrados, nos acostumamos a ver os signos de uma língua conhecida como se fossem a coisa mais natural do mundo, quando eles são convencionais, arbitrários. Desconstruir o uso das letras e das palavras é lembrar que essa naturalidade não existe. Assim, Marina vai nos mostrar letras caídas, desfazendo-se de um texto e recolhidas nos dedos; letras invertidas dos nomes de cidades nos mapas (e desta vez o que se desfaz é o mapa, invisível); letras como palimpsestos, sobrepostas e apagadas num papel-carbono recolhido do lixo; letras ilegíveis traçadas meio inconscientemente, como garatujas, numa folha de papel… Não se trata de desconstruir por desconstruir. De um modo ou de outro, o artista está sempre ressignificando suas imagens, portadoras de significados novos, múltiplos, possíveis, nem todos intencionalmente visados. Não há como escapar das palavras. Elas retornam pelo menos no título das obras. Mas a escolha do nome Carbono-14, por exemplo, para a série de imagens em papel-carbono, também evoca o marcador químico usado para datações biológicas, evoca o tempo acumulado no que vemos. Jogar com a polissemia e a auto-reflexividade nas imagens, assim como nas palavras, sempre foi um traço característico da arte (não só a de agora, os artistas do passado também eram conceituais ao compor suas obras).

“Carbono-14”

Mas esse processo intelectual, digamos, da elaboração de uma imagem se mistura com um outro, afetivo, no qual as palavras de novo se perdem; elas não dão conta de todo um percurso relacionado com a escolha das técnicas, dos materiais, das formas, das cores, da luminosidade, e também com a insistência em alguns temas – o gosto por mapas, por exemplo, que remete a percursos, reais ou imaginados, por cidades. Não dão conta da organização mesma que preside um trabalho minucioso (traduzido, por exemplo, na disposição de pastas num fichário). Tudo isso é posto nas entrelinhas, por assim dizer, de obras interessadas em mostrar o percurso para chegar até elas.

É o que Marina faz nesta exposição chamada Palavra Perdida. Nascida em Maceió, onde passou a infância, vivendo hoje em Porto Alegre e tendo já viajado por várias cidades do mundo, ela busca, neste seu percurso por garatujas, letras, páginas de livros, fichários, mapas e cidades, percorrer a si mesma de um modo cada vez mais consistente e cuidadoso. E se ela escolheu explorar este aspecto – a relação com a escrita – que não pode deixar de estar no centro das preocupações das artes visuais, é  para valorizar e aprofundar a especificidade do gráfico e da imagem.

 


Texto escrito em ocasião da exposição individual Palavra Perdida, na Galeria Virgílio (São Paulo), em outubro de 2008.