Ao escolher o Centro Cultural São Paulo e a sua tão utilizada biblioteca para configurar esta série de imagens, Marina inscreve-se, num primeiro momento, na linha bastante recorrente de tentar entender onde se está. Muitos artistas abordam o lugar dos seus trabalhos, valendo-se de dados arquitetônicos ou

“Mundo” (Série Biblioteca), 2008

da memória dos ambientes para investigar as relações que podem se estabelecer entre obra e espaço a partir de um contexto definido. Porém, para além de um vetor relacional, a partir de um embate direto com estes trabalhos, vejo proposições sobre o próprio suporte, sobre gesto e controle na produção de imagens. Ainda, me parece possível identificar um estado de espírito nas definições plásticas da obra.

Tudo está tão quieto, o silêncio das palavras engavetadas, das cadeiras empilhadas, o mundo que repousa sobre o gélido arquivo. Essa ideia de imagens caladas é o que primeiro me assalta ao olhar para esta série de trabalhos. Mas um ruído também acompanha a divagação. Algo que se agita pelas bordas, pela margem nada neutra do enquadramento dos objetos da biblioteca. Essas imagens condensam um estado de melancolia naquilo que essa sensação tem de saturação diante do real, um misto de prazer e conformismo com a vida como ela é. A melancolia aqui sugere imobilidade e surpresa, ao mesmo tempo em que uma certa vaidade, satisfação com o seu reconhecimento: são imagens altivas e perfeitas, centralizadas e definidas.

Uma biblioteca, o seu mobiliário não é per se carregado desse sentimento, dessa melancolia, mas os enquadramentos da artista conduzem a essa possível leitura. A moldura de ar que envolve todos os objetos provoca uma suspensão nas imagens, conduzindo-as para o terreno volátil da arte, onde nada é simplesmente o que parece. Através dessa margem afirmativa e nada aleatória se constrói uma reflexão sobre domínio na construção de imagens, escolhas que conduzem leituras. Através dessa margem as coisas perdem a sua natural continuidade com o mundo.  Isoladas, adquirem o ar melancólico da imobilidade.

“Vazio” (série Biblioteca), 2008

O instante fotográfico que tudo congela é sempre arbitrário e as escolhas por um mobiliário tão familiar e universal denotam tanto um interesse por essa visualidade quanto um modo de se relacionar com as palavras: olhar o verbo enquanto coisa, para além do seu conceito.  A palavra-objeto, a palavra-rastro, a palavra-definição, a palavra-desenho, abordagens recorrentes da linguagem escrita em outras obras da artista, aparece aqui como palavra-imagem-contexto, a biblioteca como o lugar das organizações, classificações, sistematizações das categorias do texto. O que permanece em todas aproximações é um misto de curiosidade e acidez em relação ao modo como o verbo se acomoda nos objetos do cotidiano.

A fotografia hoje tem tantas possibilidades que seria infrutífero e inútil tentar dar conta dessas facetas, mas não resisto a tentar pensar essas imagens enquanto parte de um todo bastante afirmativo. Quer dizer, a capacidade técnica de registrar o real em sua estupidez altiva, aliada à capacidade daquele que fotografa de propor leituras tanto sobre o objeto escolhido para eternizar, quanto do próprio ato fotográfico.

“Botânica” (série Biblioteca), 2008


Texto escrito em ocasião da exposição individual “Biblioteca”, no Centro Cultural São Paulo (novembro a dezembro de 2008). Exposição premiada com Prêmio Aquisição do Programa de Mostras do CCSP.