“A longo prazo, todos estaremos mortos”. Essa máxima do economista John Maynard Keynes, incluída em seu Tratado sobre a reforma econômica (1923), até hoje é discutida fervorosamente tanto pelos que apoiam quanto pelos que criticam seu pensamento. Discute-se o quanto ela funciona como legitimação do endividamento inconsequente do Estado ou como chamado à tomada de riscos necessários para que a economia faça mais no presente do que explicar fenômenos passados. Mas desconfio que não seja exatamente pela importância da economia que essa citação se tornou tão célebre. Mesmo truísta, a sentença nos impacta por dar forma a uma verdade fatal que nos acostumamos a ignorar, ainda que sua lembrança possa transformar instantaneamente o significado de nossos anseios e angústias.

A longo prazo, é claro, todos estaremos mortos. Todos. Eu e você. Nossos amigos e familiares. Nossos inimigos. Aqueles que nunca vimos. Nossos países, nossas civilizações. Todos mortos, ingressos na história e depois nem isso, pois nossa história também morrerá, cedo ou tarde.

Pensar nisso muda a perspectiva temporal com que se pode avaliar as próprias ações e também os acontecimentos do presente. “O tempo ficou enterrado no espaço”, disse-me a artista Marina Camargo em uma carta sobre sua experiência recente. De fato, ao observar o panorama de sua produção, percebe-se que com frequência ela amealha signos provenientes de modos de registro, catalogação, mapeamento, projeção e construção de territórios e paisagens. Existe um sentido histórico-crítico atual que fundamenta a eleição de cada um desses signos, como a constatação da violenta arbitrariedade que ganha concretude toda vez que uma fronteira entre países é determinada ou a ponderação sobre a sujeição da natureza aos desígnios do “progresso” da civilização ocidental. Esse comentário imediato que sublinha a atuação de gestos passados sobre o presente, porém, não esgota o campo de preocupações de Camargo, nem é exatamente o que está no cerne de suas operações plásticas e conceituais.

Ao recortar, deslocar, transferir, revestir, derreter, narrar, borrar, sonorizar, emendar, multiplicar ou dobrar os signos da modelação do espaço, Marina Camargo também os coloca em distintas perspectivas históricas. Muitas vezes, é como se estivesse acelerando a passagem do tempo para reencontrar os vestígios da ação humana como ruína e, mais adiante ainda, como sedimentos (vestígios, traços, cacos) de um passado perdido. Será nesse horizonte que ações humanas e processos naturais de erosão e sedimentação irão misturar-se até a indistinção. Será ali que os sonhos de poder e controle se revelarão como mais um sopro na incansável descarga entrópica que nos conduz ao fim do tempo, literalmente. Tudo, em seu tempo, morre. Mas, também, como Camargo escreve: “tudo, em seu tempo, torna-se natural”, torna-se uma “dobra da natureza”.

Realizado entre 2012 e 2018, o filme Beckton Alps é o mais completo exercício desse pensamento. Neles, a artista refrata luzes e sombras da história da montanha artificial homônima construída às margens do rio Tâmisa, em Londres. Ela recobre os restos de uma das maiores refinarias de gás já construídas na Europa – seus resíduos tóxicos acumulados desde o século XIX formaram a pilha de entulho que deu origem ao apelido de “alpes”. A sociedade então se encarregou de empilhar novas camadas simbólicas e usos mais ou menos funcionais ao espaço, que Marina Camargo escava em uma arqueologia do presente. Escavações das ruínas que existem, assim como aquelas que podem vir a ser ou desaparecer. Essa operação se revela tanto crítica quanto inventiva, pois expandir os horizontes de tempo a partir dos quais se aprofunda a relação com o lugar em que alguém está é um exercício conceitual e também uma tarefa poética.

Com exercícios e tarefas como essas, a artista delineia uma prática que tem seus antecedentes. Na literatura brasileira, pode-se pensar em Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa. Na arte global, é inevitável lembrar dos escritos de Robert Smithson. Em comum, esses autores tão díspares têm a capacidade de encontrar nos mesmos gestos evocações de violência e de possibilidade, entendendo que os vis propósitos dos poderosos nunca deixam de ser reinventados pelos que têm urgência e potência de vida, enquanto que os mais esforçados desejos de controle e planejamento estão fadados a se misturar com os atos de destruição e guerra no longo final dos princípios da vida nesta terra torturada.

* Paulo Miyada é pesquisador e crítico de arte.

Texto escrito em ocasião da exposição individual de Marina Camargo Antes, e ainda agora