“A escrita transformou-se assim, ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças, de correspondências extra-sensíveis.”  Walter Benjamin, “Obras escolhidas I”, p.111

“The star is always a kind of ruin. That its light is never identical to itself, is never revealed as such, means that it is always inhabited by a certain distance or darkness.”  Eduardo Cadava, “Words of Light”, p. 30

O mapa da cidade

Para observar a estrutura de uma cidade é preciso distância: uma vez na cidade, perde-se a compreensão de sua estrutura. No desenho de um mapa observamos todas essas camadas plasmadas em uma superfície, reduzidas a um aglomerado de linhas – como se todas as dimensões temporais e espaciais fossem projetadas em uma única superfície, formando uma imagem plana a partir de um organismo complexo.

O mapa de uma cidade é um tipo de planificação de fragmentos, diversas histórias e sedimentações do tempo ocorridas no espaço. Não se trata de uma narrativa linear, mas antes da transformação de uma topografia complexa para a forma bidimensional de um desenho. No desenho mapa não há cidade alguma: há uma representação do espaço urbano onde apenas uma das múltiplas camadas permanece visível.

Pensar com as estrelas

O mapa das estrelas é uma planificação da posição de diversos corpos celestes no universo. É, ainda, um mapa que registra desaparições: cada ponto de luz que avistamos indica um momento passado que chega até os nossos olhos com atraso e com a aparência simplificada de um ponto luminoso no céu.

Considerar [1] que as estrelas indicam um momento específico no tempo é pensar com as estrelas sobre a sua própria dimensão temporal. Um mapa de constelações é um mapa do tempo. Se cada estrela é um tipo de ruína da sua própria existência, somos testemunhas desses vestígios que brilham através do tempo e da escuridão do universo.

Mapas de desaparecimentos

Os mapas de cidades são constituídos por uma série de construções, destruições, aparecimentos e reconstruções. Os mapas estelares indicam a posição de corpos celestes no nosso horizonte visível. A natureza desses dois tipos de mapas é distinta: as linhas do mapa de uma cidade podem ser percorridas, ou seja, é possível perder-se nessas ruas que vemos como traços; os pontos que marcam a posição das estrelas indicam momentos específicos no tempo, embora sejam, acima de tudo, índices de desaparecimentos. O espaço físico revela camadas de tempos passados, mas o faz plasmando as evidências através de camadas desses tempos sobrepostos que transformaram o espaço. A dimensão do tempo é mais abstrata para a percepção humana: tentamos apreender a dimensão temporal através da sua relação com o espaço, através da nossa circulação e presença nos lugares (ainda assim, a dimensão temporal é maior do que a medida da vida).

Olhar para o céu

Observar as constelações e através delas ler o tempo nos posiciona como um ponto no universo. A nossa posição forma uma triangulação em relação ao universo visível: existimos, assim, em relação a esta imagem do universo. Entretanto o universo não depende do nosso olhar. O que vemos é uma planificação fragmentada de tempos passados.

Como visualizar o tempo?

O mapa das estrelas pode ser um modo de visualizar a dimensão temporal, enquanto desenho no espaço. Aqui, como se fossem letras de um alfabeto, os pontos e as linhas sobre um plano evidenciam os princípios básicos da representação gráfica. Quando lemos as constelações, estaríamos então estabelecendo um tipo de linguagem em relação ao universo? Poderiam os mapas ser considerados como um tipo de linguagem?

Uma visão de microcosmo

Na vídeo instalação Mikrokosmos, o desenho de constelações pode ser observado em lentos movimentos circulares que transitam entre dezoito mapas do céu sobre Berlim (cada mapa corresponde a um dia do ano, percorrendo o século XXI até o momento em que o vídeo é mostrado). Esses mapas de estrelas podem ser vistos em uma tela disposta em frente a outra, na qual se observa o mapa de Berlim. Vê-se uma parte do mapa da cidade a cada momento, como uma espécie de registro fragmentado do espaço onde vivemos.

Circulamos entre ambas as imagens em movimento, entre uma representação do tempo passado e presente (visto nas constelações dos mapas estelares) e do espaço que percorremos e vivenciamos. Circulamos entre representações gráficas de espaço e tempo, entre uma visualização possível do espaço que habitamos (micro) tendo como medida de tempo a dimensão do universo (macro).

As representações de espaço e tempo são abstrações que criam uma outra realidade que não é nem espacial nem temporal – embora ela exista no tempo e no espaço. Na instalação de vídeo, a virtualidade da relação que se estabelece entre ambas as representações indica uma espécie de metáfora da nossa própria posição: vivemos no espaço entre a cidade e o céu, entre o mapa urbano e o mapa das constelações, onde as percepções de tempo e de espaço se constituem e se transformam mutuamente.


[1] A etimologia da palavra “considerar” já indica um sentido de pensar com os astros (con + siderare): considerare (latin) ou considerer (francês).

[2] “To represent a star, then, is to bring to the light of history what, not waiting for the day, cannot be brought to light. This is why the reading of stars involves the destruction of stars.” Eduardo Cadava, “Words of Light”, p. 30


A vídeo-instalação “Mikrokosmos” de Marina Camargo na Haus der Kulturen der Welt (Berlim) em 2018, durante o evento Minor Cosmopolitanism, curado por Zairong Xiang.