Espaços e lugares, assim como paisagens e territórios, são temas determinantes na obra de Marina Camargo. Vários conjuntos de obras tratam de paisagens específicas, cujas características territoriais são artisticamente questionadas. Trata-se, principalmente, das paisagens transnacionais dos Alpes em Alpenprojekt (desde 2011), do Pampa em Tratado de Limites (2011) e do Sertão brasileiro em Como se faz um deserto (2013). Nas obras citadas, diversas facetas de “território” são objeto de profunda reflexão, em especial quando revelam significados intrínsecos ao conceito, como “áreas geograficamente delimitadas” e “áreas de dominação”. As estratégias estéticas utilizadas fazem referência à história das respectivas paisagens e suas representações, que no caso do Pampa e do Sertão, remetem à presença (oculta) do passado colonial. O envolvimento artístico multifacetado de Camargo com territórios específicos é apresentado aqui usando o exemplo de Como se faz um deserto. O livro trata do Sertão, uma vasta região do interior do Nordeste brasileiro com aspectos geográficos e culturais próprios.

Como se faz um deserto apresenta uma dupla abordagem: por um lado, a artista recorre a representações do Sertão existentes desde os tempos coloniais; por outro, utiliza suas próprias fotografias e reflexões escritas, baseadas em uma viagem feita para explorar a região. Camargo usa o livro de maneira a refletir o “princípio de conexão e heterogeneidade” rizomático como descrito por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs (Mille Plateaux, 1980). A estrutura rizomática de Como se faz um deserto se manifesta já na própria capa do livro com marcações para-textuais e referências variadas. O “Sertão” parece ser imediatamente reconhecível pela fotografia icônica de uma paisagem de terra vermelha na capa, que, aliás, utiliza cores nessa mesma tonalidade. Essa primeira impressão, no entanto, é questionada pelo próprio título, “Como se faz um deserto”, que remete à construção de uma determinada paisagem. Claramente, o termo deserto serve menos como caracterização geográfica, o que seria errôneo no caso do Sertão, e mais como metáfora, no sentido de uma área hostil, escassamente povoada, marcada pela seca e pela pobreza. São precisamente esses significados do campo semântico da palavra deserto que moldaram o discurso sobre o Sertão, desde a colonização europeia até os dias de hoje. 

Característico da estrutura rizomática de Como se faz um deserto, o livro reproduz uma fotografia histórica representando o mesmo motivo da capa: um casebre entre o chão árido e a amplidão do céu, em volta uma cerca com estacas de madeira. Essa fotografia do naturalista Louis Agassiz foi feita durante sua expedição ao Brasil em 1865, logo após a qual ele publicou o livro A Journey in Brazil. A semelhança entre as habitações retratadas por Agassiz e Camargo poderia dar a impressão de que o Sertão é um espaço do passado. De fato, essa temporalidade corresponde a uma visão que continua ainda hoje a moldar o discurso, que, ou estigmatiza o Sertão associando-o ao atraso, ou o vincula de maneira supostamente positiva a um estado primordial. Camargo, no entanto, recorre a tais representações redutoras apenas para refletir criticamente sobre elas, tornando visível a diversidade do Sertão. Assim, a fotografia em pequeno formato da capa reaparece no livro ocupando uma página dupla. Nessa reprodução da mesma foto, que passa a ter mais do que o dobro do tamanho, surgem detalhes dificilmente reconhecíveis na capa. Como se pode ver agora, a casa está ligada à rede elétrica e tem uma antena parabólica. A fotografia em grande formato testemunha assim a ligação entre tradição e modernidade. O reiterado retrato fotográfico de uma habitação “típica” na obra de Camargo não é, portanto, um sinal de atemporalidade mítica, mas de historicidade e de reflexão crítica das formações discursivas sobre o Sertão. Esta abordagem não se limita a referências interpictóricas. Como a capa de Como se faz um deserto já deixa claro, as referências pictóricas são elementos de uma rede rizomática que compreende também numerosas ligações intertextuais e intermidiais.

O título Como se faz um deserto é uma citação do livro Os Sertões: Campanha de Canudos, de Euclides da Cunha, publicado em 1902, que desde então vem moldando a ideia de Sertão de forma marcante. Numa síntese de romance e ensaio, tratado científico sobre várias disciplinas da história natural e relato histórico da época, em particular sobre o massacre de Canudos, Euclides da Cunha fornece uma descrição abrangente do território que ele chama de “sertões”, no plural. Seu texto alterna entre um estilo científico e formas de expressão claramente poéticas; descrições precisas e sóbrias e formulações de alta sonoridade e ambiguidade metafórica, combinando esses diferentes registros de modo a formar um estilo próprio.

Em Como se faz um deserto não existem apenas referências concretas à obra de Euclides da Cunha, mas também semelhanças estruturais. Da mesma forma que o livro de Camargo, Os Sertões escapa à definição de um gênero em particular e caracteriza-se por uma construção plurimidial com diversas referências intertextuais. Localizado em um campo de tensão entre vários gêneros e formas de escrita, o livro incorpora diversas mídias: variados mapas da geologia, geografia e flora do Sertão, três fotografias contemporâneas de Canudos feitas por Flávio de Barros, assim como um desenho da caatinga, paisagem típica do Sertão, retirado do livro Brazil and the Brazilians (1857), de Daniel P. Kidder e James C. Fletcher, e também retomado por Marina Camargo em Como se faz um deserto.

Quase à guisa de leitmotiv, Camargo faz referência à primeira parte de Os Sertões, intitulada “A Terra”, e que caracteriza o Sertão do ponto de vista geográfico, geológico e biológico. Através de reproduções fotográficas, a artista retoma quatro passagens da obra de Euclides da Cunha. Tais fotografias não apenas reproduzem certas páginas do livro, mas principalmente expressam a leitura pessoal de Camargo e sua apropriação de trechos de Os Sertões. As partes selecionadas do texto são, então, destacadas por meio de recortes de imagem e nitidez seletiva, e recontextualizadas usando métodos distintos: tanto por meio da sequência de páginas, com o arranjo específico de imagens, textos e mapas daí resultantes, quanto através da edição de imagens, por exemplo, quando a borda de uma página de Os Sertões continua na linha do horizonte de uma fotografia do Sertão. As fotografias expressam também a relação performática com a obra do escritor, por exemplo, através da presença da mão da artista em algumas páginas do livro, assim como de sublinhados e outras marcações de texto. Particularmente significativa é uma fotografia do início do capítulo 5, “A Terra”, onde a artista escreveu à mão dois títulos da primeira parte de Os Sertões: “Como se faz um deserto”, título e tema central do livro, e “Uma categoria geográfica que Hegel não citou”. Na página em questão, Euclides da Cunha se refere à definição hegeliana de “geographische Unterschiede” (“diferenças geográficas”) no planalto, no vale e no litoral, desenvolvida em Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie (Palestras sobre a História da Filosofia, 1833-36). No decorrer do capítulo, ele critica o fato de os “sertões do Norte” não serem abordados em Hegel, tema que Euclides da Cunha trata em seu extenso livro como uma categoria geográfica separada. Não obstante, ele segue certas suposições de Hegel, especialmente o determinismo geográfico do filósofo. Além disso, ele utiliza o procedimento de formação de categorias e a classificação como método de conhecimento na representação do Sertão.

Embora em Como se faz um deserto se perceba uma certa afinidade com Os Sertões, há diferenças fundamentais entre as duas obras. Enquanto Euclides da Cunha, em última análise, adere a uma visão de mundo positivista, reafirmando o determinismo geográfico e fazendo atribuições classificatórias, é precisamente sobre estas abordagens que Marina Camargo reflete criticamente. Assim, na sua representação, o Sertão está marcado pela busca de um lugar fugidio. Camargo reflete sobre a percepção resultante de sua experiência de viagem no ensaio “No Sertão da calma do pensamento”. Ao se afastar do “Sertão dos estereótipos”, e se deparar com os “muitos lugares entendidos como Sertão” a artista se vê confrontada com um lugar inalcançável. A tentativa de encontrar “o Sertão” expressa-se na forma como o processo de criação do livro se integra na representação deste território. Reveladora aqui é a fotografia em página dupla no final do livro, mostrando o estúdio da artista: na parede há uma colagem de vários textos e fotografias, um desenho e, sobretudo, mapas; na frente dessa colagem, um tripé, uma mesa com utensílios de trabalho, e o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. Muitas das representações do Sertão na parede do estúdio já haviam aparecido em páginas anteriores do livro na forma de close-up. Nesse sentido, fica claro como Camargo, ao utilizar as possibilidades de configuração específicas do livro, fotografia e escrita, modifica as representações do Sertão, tornando-as parte integrante de Como se faz um deserto.

Além de trechos de Os Sertões, o livro da artista inclui ainda outro texto literário: “Histórias no Sertão, areia em Jericoacoara” de Gonçalo M. Tavares. O autor português tematiza o Sertão e a costa de forma complementar, sob a forma de um relato literário de viagem. Ele faz esboços de uma narrativa e cartografia alternativas que, em seu procedimento e performatividade, correspondem à representação do Sertão por Camargo. No que diz respeito à tradição de contar histórias no Sertão, Tavares questiona se dos movimentos da mão do narrador não emergiria uma outra história, diferente daquelas da narrativa oral. E face à constante transformação das dunas de Jericoacoara, evoca uma “outra geografia, uma geografia meio dançante, em que estas tais montanhas efémeras parecem estar sempre a troçar do cartógrafo”. Em Camargo, o texto de Tavares está integrado numa estrutura complexa de múltiplas ligações e correspondências: suas ideias para contar histórias fazem referência aos cangaceiros Lampião e Maria Bonita, que aparecem de forma singular numa página anterior de Como se faz um deserto. Numa fotografia com iluminação contrastada vê-se na beira da estrada um cenário pintado com os lendários cangaceiros, no lugar dos rostos apenas espaços escuros vazios. Com o uso do chiaroscuro, a fotografia de Camargo representa a figura do cangaceiro como símbolo mítico do Sertão, que, por um lado, aparece de maneira estereotipada, mas, por outro, através de reiterações, é constantemente renovada. Através de sua fotografia e do texto de Tavares, Camargo implicitamente aponta para a significativa tradição da representação de cangaceiros na cultura popular e na alta cultura brasileira, seja na literatura de cordel e em canções de Luiz Gonzaga, seja em pinturas de Candido Portinari, na prosa de João Guimarães Rosa, em peças de Raquel de Queiroz ou em filmes de Glauber Rocha, para citar apenas alguns exemplos.

Além dos textos literários de Euclides da Cunha e Gonçalo M. Tavares, Como se faz um deserto inclui também dois tratados científicos nos quais se discutem, respectivamente, a história do conceito de Sertão e a representação cartográfica do território. Seguindo a estrutura rizomática do livro, Camargo reproduz os dois textos, e os complementa com outras fontes que se espalham, criando novos níveis de significado em relação às diversas representações do Sertão. Em relação ao ensaio científico com sua reflexão crítica da “construção cartográfica” do Sertão, o livro apresenta inúmeros mapas históricos do território. Estes incluem uma representação cartográfica de Giacomo Gastaldi, de 1565, em que o Sertão é referido como “Terra non descoperta”, enquanto mais adiante, mapas cada vez mais detalhados testemunham implicitamente a colonização do país. No caso do ensaio sobre a história do conceito, Camargo inclui também definições de Sertão de dicionários históricos em Como se faz um deserto. Assim, a primeira página do livro reproduz uma entrada do Diccionario da lingua portuguesa (1813), de António de Moraes Silva, que define o Sertão como o interior ex negativo à costa. Uma definição quase idêntica pode ser encontrada num verbete do Diccionario da língua brasileira (1832), de Luiz Maria da Silva Pinto, também fotografada por Camargo. Semelhante aos dicionários, em que o Sertão figura simplesmente como o polo oposto ao litoral, tais formas binárias de pensamento caracterizam ainda hoje a representação desse território – e a partir do século XX, principalmente em comparação com o relativamente rico Sudeste do Brasil. Em Camargo, ao contrário, o Sertão não aparece como outra variante das representações comuns, supostamente típicas. Em vez disso, ela cria uma rede rizomática de diversos tipos de textos e formas pictóricas, cujo resultado é uma imagem de transformações caleidoscópicas, caracterizada pelo desvio, pela diferença e multiplicidade. Como se faz um deserto representa, assim, o Sertão como território atópico.

Texto originalmente publicado em Marina Camargo: der Ort danach | O lugar depois (2019), publicação organizada por Peter W. Schulze e Claudia Cuadra em ocasião da exposição “Der Ort danach”.

Peter W. Schulze é professor de Estudos Latino-americanos na Universidade de Colônia, onde é também diretor do Instituto Luso-Brasileiro e do Centro do Mundo Lusófono.